A PRESENÇA ADMIRÁVEL

A PRESENÇA ADMIRÁVEL

         A transubstanciação, superando todos os processos da natureza, por uma extraordinária intervenção da Onipotência e tornada credível à luz da metafísica do ser, comporta uma outra série de prodígios.

         O primeiro – que confirma a tese filosófica da real distinção da quantidade da substância corpórea – fundamenta a possibilidade, pela qual, aqui os acidentes do pão existem sem a substância do mesmo...; enquanto a substância do Corpo de Cristo conserva todas as suas propriedades, mesmo que não acessíveis aos nossos sentidos.

          Ora, o milagre, diretamente refere-se ou diz respeito apenas às dimensões do pão, indispensáveis porque sujeito imediato das qualidades que as supõem: cor, sabor, gosto, etc... exigem algo de extenso, incluindo nos limites de um certo lugar por todos capaz de ser indicado.

         É precisamente pelas dimensões que as qualidades podem ser percebidas pelos sentidos, e o pão consagrado pode ser partido, multiplicado, ocupar um lugar, deslocar-se de um lado para o outro do espaço.

          Mas isso não autoriza a pensar que a presença eucarística, seja comparável à de todas as substâncias corpóreas. De fato, a presença do Corpo de Cristo, sendo condicionada às dimensões do pão (e não às Suas próprias dimensões), não pode dizer-se local, mas sacramental, miraculoso. Cristo, por conseguinte, está justamente onde se encontram as dimensões do pão consagrado, e move-Se de um lugar para o outro, não por Si Mesmo, mas por estas dimensões. Se adora em muitos altares, é porque neles está presente, não como em muitos lugares, mas “como no sacramento”, ou seja, de um modo sacramental não local.

          A natural localização de uma substância corpórea é possível apenas pelas dimensões próprias da mesma: pelo que a idêntica substância individua não pode ocupar, simultaneamente, mais lugares circunscritivos.

         Se tudo isso é certo, segue-se que o sinal primário da real presença de Cristo são as dimensões do pão consagrado, qualquer que seja a sua grandeza: e isto porque, mesmo prescindindo da transubstanciação, a substância do pão conserva a sua própria essência, indiferentemente numa hóstia inteira e num seu fragmento dificilmente visível, como no resultado da limadela de uma moeda de ouro – um grãozinho de pó que dela resulta não muda de natureza: mantém todas as suas propriedades organolépticas cientificamente susceptíveis de se verificar.

         E por isso, as naturais propriedades do pão consagrado, mantêm-se imutáveis, revelam-se e comportam-se a transubstanciação não se tivesse verificado. Ora, precisamente são a origem próxima de todos os fenômenos que se lhes seguem, se é certo que toda a substância criada é, por si mesma, inerte.

         Não surpreende, por isso que o pão consagrado, em particulares condições por irrevogáveis leis da matéria se corrompa.

          Isso não depende da substância mas das suas qualidades, que se comportam como se a substância do pão fosse ainda real. Falo de qualidade mantidas pelas dimensões que prodigiosamente suprem a matéria do pão, sujeita a corromper-se, dando origem a novas substâncias, como por exemplo a cinzas, em caso de incêndio...

          E é sempre pela razão agora apontada que pão e vinho consagrados podem respectivamente saciar e embriagar; isto, que não depende diretamente das suas substâncias (transubstanciadas no Corpo e no Sangue de Cristo), mas das propriedades (ou energias) dos respectivos elementos. Repito-o: não existe substancia criada que seja ativa por si mesma...

          Se, no culto eucarístico, os nossos sentidos se deixam arrastar ou prender pelo invólucro sensível das propriedades naturais do pão, ou seja, não atingem a substância do Corpo de Cristo, qualquer comportamento humano deixa inalterada essa mesma substância, tanto para o bem como para o mal.

         Ilude-se, portanto, quem pretende fazer sofrer Jesus, pisando ou despedaçando uma hóstia consagrada: e isto, mesmo abstraindo da atual condição de impassibilidade de Cristo Ressuscitado. Em semelhante caso, o sacrilégio ultraja apenas a Sua Pessoa, como uma blasfêmia pode ofender Deus...

          Deste modo, a misteriosa presença sacramental de Jesus, fundada na transubstanciação enquanto nada tira à Pessoa do Verbo Incarnado, tudo remete para as situações ou disposições de espírito do homem, o qual da Eucaristia, poderá fazer tudo o que quiser: honrá-la e profaná-la... Não há nada mais frágil, modesto, vulnerável, do que uma partícula consagrada.

         Presta-se a todos os usos; está sujeita os riscos e incidentes; é motivo das celebrações mais solenes e das manipulações mais torpes e indecentes...; do amor mais fervoroso e sublime e dos mais diabólicos gestos de desprezo e ódio...; pode guardar-se em preciosos e artísticos sacrários, e ser deitada ou abandonada, em armários carunchosos e repletos de pó...

          Todos hoje podem tocá-la, distribuí-la, transportá-la, roubá-la: sacerdotes santos e leigos irresponsáveis ou mesmo indecentes...

         Quem não acredita, vê nela um fragmento de matéria inerte, incapaz de se defender, opaca, sem vida, de nenhum valor. Na Sua Cruz, o Senhor, moribundo, estava ainda reconhecível como homem: “homem das dores”, mas sempre homem, insultado por alguns, mas também chorado, suplicado, bendito por outros...

          Aqui, já não vejo nada: a Incarnação entende-se até perder os Seus limites nos domínios imensos e obscuros da matéria inorgânica, extremo limite da Onipotência criadora... E é por ela que, do mundo o Verbo volta a subir para o Pai, concluindo o ciclo da permanente aventura do Amor, que Se sujeitou a um total esgotamento de Si Mesmo, o Infinito.

 

PÃO E VINHO

          Ao tradicional banquete dos judeus não podem faltar pão e vinho, elementos essenciais para a instituição do sacramento eucarístico.

          Ora, que Jesus diga que o pão é o Seu Corpo, não pode admirar nenhum dos Apóstolos, depois daquilo que Ele Mesmo tinha explicado na sinagoga de Carfarnaum. Por outro lado, motivo de surpresa, pelo menos num primeiro momento, foi a peremptória declaração de que o vinho é o Seu próprio sangue. Mas toda a dúvida foi resolvida, não apenas por eles terem recordado que o Mestre tinha acrescentado que o Seu Sangue é verdadeira bebida, mas também o fato de lhes ter afirmado que quem, além de comer a Sua Carne, beber também o Seu Sangue, permanece n’Ele por uma inefável compenetração de amor.

          Por isso, à distinta menção do pão e do vinho corresponde a da carne e do sangue. Por que razão, pois, distinguir os dois elementos, como depois o afirmará São Paulo, ao voltar a recordar e evocar a Última Ceia? E porque Jesus ordena que repitam o mesmo rito, distinguindo a consagração do vinho? Qual o significado desta liturgia?

          É o que os Apóstolos, antes do Pentecostes, não conseguiram compreender, apesar de o Mestre ter predito muitas vezes a Sua Paixão e Morte e, em Cafarnaum, ter declarado que a Sua Carne iria ser sacrificada pela salvação do mundo.

         Dados bíblicos de supremo interesse, de que a Igreja primitiva intuiu muito bem o sentido, repetindo o rito da Última Ceia, para celebrar sacramentalmente o Sacrifício da Cruz, ou seja, a imolação do verdadeiro Cordeiro que tira os pecados do mundo.

        Como, pois, a Última Ceia é a antecipação sacramental da Oferta cruenta do Calvário, assim também esta é representada sacramentalmente em cada celebração da Missa chamada precisamente Sacrifício Eucarístico. Sacrifício que, reconciliado o homem com Deus, não pode deixar de se concluir com essa consumação da Vitima imolada símbolo da recuperada amizade de Deus por parte dos fiéis, obtida pelos méritos da Paixão expiadora e redentora.

          Por isso, a Eucaristia compreende ou inclui inseparavelmente o dúplice aspecto sacrificial e convivial, no sentido de que um tem valor primário absoluto, porque supremo ato de culto referido a Deus que ofendido pelo pecado exige a reparação oferecida pela Paixão de Cristo. Mediador-Chefe da humanidade pecadora.

         Pelo contrário, o valor do outro é relativo, porque depende da eficácia do primeiro e refere-se ao bem do homem: a redenção que o reabilita é indispensavelmente condicionada à expiação satisfaz a Justiça de Deus, muito embora a satisfação da Justiça de Deus esteja por Ele liberalmente subordinada à revelação da Sua Misericórdia, a quem compete a iniciativa de tudo.

         Deus não pode ser misericordioso com o homem, se o homem, acima de tudo, não é justo com Deus no reafirmar o sentido absoluto do Seu primado, de quem depende todo o seu bem.

          Que reduzisse a liturgia eucarística a um convívio fraterno, privá-la-ia da eficácia redentora que deriva do seu caráter essencialmente sacrificial. Tudo se desenvolveria precisamente segundo a tendência horizontalista que humaniza o rito, baixando-o ou reduzindo-o ano nível de um fato ou acontecimento social (comunitário) na exclusão da sua referencia à Transcendência, à obra expiadora de Cristo, à realidade histórica do pecado, ao sacerdócio ministerial da Igreja hierárquica.

          É tudo quanto está subentendido na distinta consagração do pão e do vinho, elementos de um banquete que não oferece outro alimento nem outra bebida senão a carne e o sangue da Vítima sacrificada pela salvação do mundo.